Raízes e Palavras: Escrevendo (e Resistindo) no Coração do Brasil

Há uma pergunta que me acompanha, seja em lives ou conversas descontraída: “Como é ser escritor no Mato Grosso do Sul?”. A pergunta vem, quase sempre, carregada de uma curiosidade genuína, mas também de um certo estranhamento. Como se a literatura só pudesse respirar no asfalto cinza do eixo Rio-SP. Questionar é válido e sempre aproveito para explanar.

A minha resposta é sempre a mesma: é um ato de resistência e, ao mesmo tempo, uma imensa sorte. Escrever no MS é abraçar desafios concretos, mas também é ter acesso a um universo de oportunidades invisíveis para quem está no “centro” do mundo literário brasileiro.

Os Desafios: A Solidão e o Apagão Cultural

Vamos ser sinceros. O primeiro desafio é material. O mercado editorial brasileiro é centralizado. As grandes editoras, os agentes literários mais influentes, os principais eventos midiáticos e as feiras gigantescas estão todos no Sudeste. Isso cria um “apagão cultural” logístico e, por vezes, mental.

  • A Solidão do Autor “Fora do Eixo”: Muitas vezes, você escreve sozinho, sem uma comunidade literária densa e barulhenta para debater ideias em um café toda semana. A troca acontece mais online ou em eventos esparsos. Há uma certa solidão na falta do burburinho cultural constante. Há uma pretensão sobre as pautas, um ditame nada silencioso que pretere obras e artistas, como se dissesse que não há espaço para todo mundo em nome do mercado. Mas faremos acontecer, pois quando uma porta se fecha outra se abre.

  • A Dificuldade de Acesso e Visibilidade: Conseguir que uma editora grande olhe para o seu manuscrito é difícil para qualquer um, mas quando seu CEP é 79000-000, parece que você precisa provar não apenas a qualidade do seu texto, mas a própria relevância da sua existência geográfica. A pergunta não dita às vezes é: “Alguém de lá pode ter algo a dizer para o ‘Brasil’?”. E isso não se dá apenas para o meio literário, quem vive de cultura em MS sabe bem do que estou a falar.

  • O Custo de Existir no Circuito: Ser convidado para uma bienal ou um evento importante no Sudeste significa um custo proibitivo de passagem aérea e hospedagem. Muitas vezes, escritores do centro-oeste, norte e nordeste são excluídos simplesmente pela logística financeira. Quando há a possibilidade, alguns poucos se aventuram em mutirões e reúnem-se em grupos para dividir sessões e baias em espaços diminutos com tempo reduzido.

As Oportunidades: A Força Invisível das Raízes

Agora, aqui é onde a magia acontece. Se por um lado estamos longe do “centro”, por outro, estamos no centro de nós mesmos. E é essa perspectiva única que é nossa maior riqueza.

  • A Paisagem que Vira Personagem: Mato Grosso do Sul não é um pano de fundo; é um personagem. O Pantanal não é apenas um bioma, é um estado de espírito, um lugar de solidão vasta e vida transbordante. O cerrado, com sua resistência silenciosa, suas raízes profundas e sua aparente aspereza, é uma metáfora perfeita para o nosso povo. As cidades de fronteira, com seu caldeirão de sotaques (português, espanhol, guarani), respiram uma identidade cultural híbrida e fascinante (reunindo desde o sulista ao nordestino). Quem escreve daqui tem uma voz geográfica única.

  • A Autenticidade como Mandato: Longe das tendências instantâneas das metrópoles, temos a liberdade de não precisar seguir modas literárias. Nossa escrita pode ser mais orgânica, mais conectada com o que realmente importa para nós. Isso gera uma literatura mais autêntica, menos pasteurizada. Procure as obras de Jaminho e desperte algo a mais em si.

  • Criando Nossos Próprios Eixos: A Força da Comunidade: Este talvez seja o ponto mais importante. Aqui, aprendemos que não podemos esperar por oportunidades; temos que criá-las com as próprias mãos. Foi dessa necessidade que nasceram iniciativas como o MS POETAR e o POETAR MEU. Eles são mais do que projetos; são a materialização da resistência. Através deles, criamos uma rede viva de escritores e poetas, uma teia de apoio fundamental para o compartilhamento de ideias, a difusão de trabalhos e a construção de uma cena literária forte e unida. Essa rede prova que, juntos, nós não apenas preenchemos os vazios, mas construímos um novo centro, nosso próprio eixo pulsante.

  • Uma Cena Cultural Aquecida e Acolhedora: Diferente do que se imagina de longe, há uma cena cultural fervilhando! Temos uma cena forte de slams e saraus (em Campo Grande, Dourados, Corumbá), festivais literários importantes, editoras independentes e universidades públicas que fomentam a pesquisa e a criação. A cena independente é nossa maior força. Aqui, todo mundo se conhece, se apoia e se divulga. É uma comunidade, não uma competição.

  • O Olhar Estrangeiro para o Próprio País: Escrever da fronteira, do centro-oeste, é como olhar para o Brasil de um ângulo novo. Temos uma perspectiva crítica sobre o que é ser “brasileiro” que é diferente da narrativa hegemônica do litoral. Podemos falar do agronegócio, das comunidades tradicionais, da identidade pantaneira, da herança indígena forte e viva com uma profundidade e nuance que nenhum observador de passagem conseguiria.

No Pessoal: Escrever é um Ato de Pertencimento

Para mim, pessoalmente, escrever em Mato Grosso do Sul é um ato de amor e pertencimento onde nos embrenhamos em grandes desafios. Cada texto é uma forma de decifrar o lugar onde nasci ou escolhi viver. É uma maneira de dizer: “nós estamos aqui, e nossa história importa”. E iniciativas como o MS POETAR e o POETAR MEU são a extensão natural desse sentimento, transformando a solidão inicial em uma poderosa corrente de voz coletiva.

É entender que minha literatura não é apesar de ser sul-mato-grossense, mas exatamente porque sou sul-mato-grossense. A quietude da minha cidade me oferece o silêncio necessário para ouvir minhas próprias vozes interiores. A vastidão do horizonte me lembra que há sempre mais para explorar, tanto fora quanto dentro de mim.

Concluindo:

Ser escritor em Mato Grosso do Sul é, acima de tudo, entender que o eixo Rio-SP é um ponto no mapa, não o mapa todo. É abraçar o desafio de criar seus próprios espaços, suas próprias redes e sua própria relevância.

É saber que nossa maior contribuição para a literatura brasileira é justamente aquilo que nos torna diferentes: nossa paisagem, nosso ritmo, nosso calor e nossas histórias que ainda não foram contadas. O desafio é real, mas a oportunidade de ajudar a moldar a voz literária dessa região é um privilégio raro e poderoso.

E no final das contas, a literatura não precisa de um CEP para existir. Ela só precisa de um coração que batifique em português (com um forte sotaque do cerrado) e de coragem para colocar no papel.

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